Mica: Lara já é tradição começarmos com o entrevistado fazendo um resuminho de si mesmo, para introduzir aos leitores. Então, conta pra gente, quem é Lara Fidelis?
Lara: Lara Fidelis é uma sonhadora. Uma pisciana que vive com a cabeça nas nuvens e os pés nas quinas dos móveis. E, de tanto sonhar, aprendeu a colocar seus devaneios no papel. Da poesia infantil, passou para os diários adolescentes, depois para o jornalismo, até criar coragem de mostrar seus textos para o mundo e lançar seu primeiro livro.
Mica: E como isso aconteceu, lançar um livro?
Lara: Eu escrevo desde que me conheço por gente. Fui criada no meio de livros. Filha de pais jornalistas e também escritores. Meu pai tem mais de 30 livros lançados e foi indicado para o Prêmio Jabuti, um dos mais importantes da literatura. Na verdade, eu sempre sonhei em ser médica, mas minha avó era enfermeira e me fez acreditar que era uma profissão muito sofrida. Quando parei para pensar o que fazer, percebi que o que eu fazia de melhor era ler e escrever, o que acabou me levando para o jornalismo. Meus pais não me influenciaram diretamente, mas crescer numa redação de jornal acabou me tornando uma apaixonada pelas letras e pelas notícias. Eu sempre tive meus caderninhos, escrevia em todo papel que encontrava. Mas nunca tive coragem de mostrar para o mundo. Então, num momento em que senti grande necessidade de mudar minha vida, comecei a fazer uma oficina literária. E lá comecei, enfim, a dividir meus rabiscos com as pessoas. Ao perceber que gostavam do que escrevia, inscrevi-me num concurso chamado Mapa Cultural Paulista. Mandei dois textos. Um foi finalista e o outro, vencedor. A partir daí, a ideia de lançar um livro se tornou ideia fixa.
Kelly: Então, a história do seu livro recém lançado 'Tsunami' era algo que você já tinha em mente por anos, ou simplesmente surgiu uma inspiração e você se dedicou/entregou à ela?
Lara: A ideia já existia desde que venci o Mapa Cultural Paulista, em 2007/2008. Na verdade, acho que sempre existiu. Mas lançar um livro no Brasil é algo complicado. As grandes editoras dificilmente investem nos novatos. E eu não queria pagar para publicar um livro. Então, resolvi inscrever meu projeto de livro no ProAc - Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo. E, para minha felicidade, fui escolhida entre centenas de autores de todo o Estado. Ao vencer o ProAc, assinei um contrato com o Governo do Estado. Eles bancariam a edição do meu primeiro livro, ficariam com 20% da produção para bibliotecas públicas, e o restante eu poderia distribuir como quisesse. Foi juntar a fome com a vontade de comer!
Mica: Conta como foi a noite de autógrafos.
Lara: As noites de autógrafos foram sensacionais. Aqui em Santo André, fiz em uma livraria, que é quase um patrimônio cultural da cidade. Foi uma delícia ver a fila de amigos esperando autógrafos. Eu não conseguia parar nem para beber água! Em São Paulo, fiz no Piola, uma pizzaria moderninha que investe muito em cultura. Lá rolou coquetel e um espaço muito bom para a exposição das fotos que ilustram o livro. Foi outra noite linda. E o melhor: apareceram muitos amigos que eu não via há tempos. Além de lançar o meu “bebê literário”, pude reencontrar muita gente bacana que andava sumida. Eu fiquei muito feliz. Não sabia que era tão bom lançar um livro.
Mica: Sobre o Tsunami, qual o formato do livro?
Lara: Desde que comecei a alimentar o sonho de publicar um livro, imaginei algo diferente. Não queria um livro comum, só com textos. Eu queria uma diagramação diferenciada, ilustrações bacanas. Enfim, queria unir meu texto a um projeto gráfico legal. Convidei um amigo fotógrafo para ilustrar o livro. A princípio, eu pensava em utilizar fotos que já estivessem prontas. Mas ele mergulhou de cabeça no projeto. Leu todos os contos, conseguiu extrair a essência de cada um e produziu lindas imagens. Cada conto é ilustrado por uma foto exclusiva, produzida pelo grande Maurício Ercolin,um fotógrafo de rara sensibilidade.
Mica: Nossa, isso é incrível! Adorei o diferencial! Por que Tsunami?
Lara: Tsunami é um nome de um dos contos. Porém, resume a ideia do livro, que é um “tsunami” de emoções, sentimentos, paixões, ódios, vazios... O conto Tsunami fala justamente de como os sentimentos se banalizaram, só que de uma forma muito surreal. Ao montar o projeto do livro, achei que o nome captava bem a essência dos meus textos.
"Você tem fome de quê? E eu respondi: de renascimento"
Mica: Lara, posso voltar um pouquinho no assunto? Queria que você falasse mais da oficina literária: onde era, como funcionava, se ainda rola?
Lara: A oficina foi um divisor de águas na minha vida. Eu vivia uma relação desgastada, não me reconhecia mais, não enxergava mais a Lara. Um dia, por acaso, recebi um folheto que falava da Casa da Palavra, um espaço cultural da Prefeitura de Santo André, que promove uma série de eventos literários. Na época, havia uma programação muito legal. Fiquei tão empolgada que fui tomar um suco numa lanchonete na esquina da minha casa, entrei lendo o panfleto, não vi um degrau e quebrei o pé. Naquele momento, a imobilização me fez ver que eu precisava me mobilizar. Mesmo com o pé quebrado, fui até lá, fiz a matrícula e entrei num grupo chamado Poéticas da Oralidade. Era uma turma fantástica! Muitas cabeças legais, uma professora sensacional e aos poucos eu fui me redescobrindo. Alguns dos textos do livro foram criados nessa época e foram libertadores. Já no primeiro encontro, tivemos que responder à pergunta: você tem fome de quê? E eu disse: de renascimento. E então a borboleta começou a sair do casulo...
Mica: Hm já deu a dica! É daí que vem o nome do seu blog? Fale um pouco dele.
Lara: Meu blog
Lagarta de Fogo foi criado justamente para extravasar a necessidade de mostrar meu trabalho ao mundo. Antes, eu tive um blog chamado It Sounds Fish, que era bem bacana, mas que acabou morrendo quando virei mãe. Era um blog bem sarcástico, mas depois da maternidade eu só falava de filhos e senti que era hora de parar. Tempos depois, voltei à blogosfera com o Lagarta de Fogo, um trocadilho com a história da lagarta virar borboleta, mas como tenho os cabelos vermelhos a lagarta deveria ser de fogo! Eu gostava muito de escrever ali. Era um espaço bacana. Até eu perceber que estava me policiando de dizer certas coisas porque não queria que certas pessoas soubessem da minha vida. E o blog acabou parado também. Penso em retomá-lo, mas ainda não decidi se o faço renascer ou se crio um novo. A princípio, acho mais interessante a ideia de criar um novo...
Politicamente incorreta
Mica: É... nós bem sabemos como é isso de ter de se policiar pensando em quem vai ler...
Lara: E tem outra coisa: hoje tudo está muito politicamente correto. E eu acho isso uma chatice. Não é sair por aí torpedeando todo mundo, falando mal das pessoas, mas a gente tem que pensar mil vezes antes de escrever qualquer coisa, porque sempre vai aparecer um ofendido ou um revoltado. Sinceramente, eu não suporto esse mundinho politicamente correto. Por isso, Tsunami é bem incisivo. Eu falo o que penso. Há contos ali que passam bem longe do politicamente correto.
Mica: Paradoxalmente, o mundo politicamente correto nos priva de liberdades e faz os seus defensores acreditarem que são portadores de uma verdade maior e, portanto, podem agredir qualquer um que ele não concorde com suas opiniões...
Lara: Eu concordo completamente com você. Hoje, todo mundo se acha dono da verdade. Na época do Lagarta de Fogo eu combatia muito as privações de liberdades. Meti a boca na lei anti-fumo, por exemplo. E não fiz isso porque fumo. Fiz porque achei que feria o direito de ir e vir das pessoas. Naquela época, o governo queria proibir até a venda de coxinhas nas cantinas escolares e de quentão nas festas juninas. Cheguei a pensar que logo seríamos proibidos de contar piadas. Ou que haveria até uma fiscalização nos motéis: na hora H, chegaria um fiscal para perguntar se o casal estava usando camisinha...
Mica: Tem um outro lado seu que acho incrível, a Lara super mãe. Como é ser mãe de um casal e gêmeos?
Lara: Sempre quis ser mãe. Mas a maternidade surgiu de forma totalmente imprevista. Eu namorava há três meses e de repente engravidei. Já no primeiro ultrassom, com apenas um mês de gestação, descobri que esperava gêmeos. Imagine só: não esperava engravidar naquele momento e muito menos de gêmeos. Foi um susto e tanto! Mas desde que fiz o primeiro teste, aquele de farmácia, senti um amor incondicional. Não foi fácil, mas sempre foi de uma felicidade imensa. Eu crio meus filhos sozinha e tenho um orgulho imenso dos seres humanos lindos em que eles estão se transformando. É lindo demais você gerar uma vida e vê-la desabrochar. Imagine isso em dose dupla e ao mesmo tempo! É incrível!
Kelly: Diz a sabedoria popular que para o ser humano se tornar completo, tem que "plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho". Você já plantou a árvore? haha
Lara: Por incrível que pareça, só falta a árvore. Não consigo fazer uma simples violetinha sobreviver. Quando criança, o primeiro livro que li foi O Menino do Dedo Verde, que contava a história de Tistu, um menino que transformava tudo em verde. Acho que me encantei tanto com a história que desenvolvi uma vocação contrária: nenhuma planta sobrevive no meu apartamento! hahahaha!
Kelly: Hmm, você disse que cresceu com livros por perto. Quem foi seu escritor preferido? Teve alguém que influenciou na sua forma de escrever?
Lara: Eu sempre li muito. Costumo dizer que na casa em que cresci havia livros até dentro do forno. E o mais legal é que nunca houve censura. Com 15 anos, eu já tinha lido a obra completa de Nelson Rodrigues. Eu lia (e leio) até bula de remédio. Mas tenho uma queda especial pelos escritores latinos. Posso dizer que meu grande mestre, tanto na escrita como no jornalismo, é Gabriel Garcia Marquez. Quando terminei de ler Cem Anos de Solidão, chorei copiosamente e senti algo forte se transformando dentro de mim. É meu escritor favorito. Mas gosto também de Jorge Luis Borges, Isabel Allende, Eduardo Galeano, todos latinos. Dos brasileiros, tenho uma queda especial por Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu (que ganhou o Prêmio Jabuti no lugar do meu pai), João Guimarães Rosa, Mário Quintana, Jorge Amado... Se eu continuar, a lista não terá fim...
Kelly: Aproveitando que você citou Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, ambos se tornaram tão populares nas redes sociais, que por fim se tornaram odiados. O que você acha sobre isso? Justo? hahaha
Lara: Acho muito injusto. São dois escritores maravilhosos. Clarice foi uma mulher à frente do tempo. Caio tinha uma linguagem ímpar, criou metáforas maravilhosas. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. E os dois foram tão massacrados na internet, como se citar trechos de suas obras fosse algo extremamente intelectual, que chega a dar vergonha dizer que gosto deles. Tenho a impressão que isso acontece com outros fãs também. É lamentável, porque deixaram obras lindas que não mereciam virar piada. E muito menos ser odiados.
"Por esta ótica, da pra afirmar que qualquer leitura é válida, desde que mexa com o indivíduo, desde que provoque alguma coisa lá dentro"
Kelly: O que você acha da absurda popularidade de livros geralmente considerados "pobres", como Crepúsculo e 50 Tons de Cinza? Qualquer leitura é válida?
Lara: Eu adoro ver gente com livros. Fico me torcendo toda até descobrir que livro a pessoa está lendo ao lado. É mania mesmo. De certo modo, fico feliz em ver que o universo de leitores aumentou sensivelmente. Nunca vi tanta gente lendo ou comentando livros. As livrarias estão abarrotadas de lançamentos. Mas confesso que me choco quando encontro pérolas como a biografia do Vampeta. Provavelmente, ficarei mais chocada ainda quando encontrar alguém lendo isso... Mas penso que é melhor ler do que não ler. O cara que hoje lê Crepúsculo amanhã pode migrar para um Stephen King. A menina que lê 50 Tons de Cinza pode acabar querendo conhecer uma Hilda Hilst... Por essa ótica, acho que dá para afirmar que qualquer leitura é válida, desde que mexa com o indivíduo, desde que provoque alguma coisa lá dentro.
Mica: Dos autores que surgiram atualmente, indica algum?
Lara: Por incrível que pareça, eu não tenho lido os novos autores. Fiquei curiosa pelo tal 50 Tons de Cinza, mas ganhei o livro e ele simplesmente sumiu. Acho que minha estante não gostou e o engoliu... E estive tão envolvida com meu livro este ano que não sobrou tempo para outra leitura. Até porque eu tinha muito medo de ler algo que mexesse muito comigo e influenciasse meus textos.
Kelly: Lara, já ouvi dizer que para escrever bem, basta praticar incessantemente. Você concorda? Para ser um bom escritor não é necessário a tal da vocação?!
Lara: Escrever, para mim, é algo que vem de dentro. É como se eu vomitasse as palavras. Elas vão saindo sem controle, muitas vezes de inspirações nada poéticas. Por exemplo: tenho um conto que surgiu enquanto eu comia um ovo frito e filosofava sobre o ovo. Acho, porém, que um bom escritor precisa de duas coisas básicas: conhecer bem o idioma e saber encadear as ideias. Com a internet, vejo muita gente que sabe bem uma coisa, mas não sabe a outra. Ou sabe as duas, mas não tem a inspiração para contar um fato. De qualquer modo, uma coisa é fundamental: saber ler - e ler muito. Um bom escritor é necessariamente um bom leitor.
Mica: Pra fechar Lara, tem algo que gostaria de dizer para os leitores?
Lara: Acho fundamental estimular a leitura entre as crianças. Eu tenho muitos livros em casa e sempre deixei ao alcance das crianças. Desde cedo, ensinei-os a respeitar os livros, tanto que nunca rabiscaram ou rasgaram algum. Acho que mesmo uma família que não tem o hábito da leitura deve dar livros para as crianças, levá-los a livrarias, contar histórias. Só assim poderemos construir mentes que pensam. E, depois, rola um orgulho de ver os pequenos lendo. As crianças pediram que eu autografasse o livro para elas. Cada um tem seu exemplar. E, outro dia, quando vi meu filhote lendo um conto que escrevi para ele, chorei como criança. É uma emoção muito forte. Para mim, a vida é mais ou menos como dizia Jorge Luis Borges: “O paraíso deve ser uma espécie de livraria”!
Tsunami
Contos brasileiros
De Lara Pezzolo Fidelis
Fotografias de Maurício Ercolin
RG Editores – São Paulo
128 páginas – R$ 30,00
Livraria Alpharrabio